É o pino do sol e mesmo assim a feira não esmorece. Além do calor, zuada. É Quirino, que veio essa semana.
De toda parte se sabia onde ele estava dizendo os versos, depois que ele arranjou uma caixa com autofalante. Não era ruim. Uma roda de gente se abria pra escutar ele, paramentado com chapéu de vaqueiro, os cordeis pendurados no pescoço e claro, seu bocão. Se eu tivesse tempo, também parava para ouvir. Era muita história boa. Umas eu até sabia um pedacinho.
Mas hoje estava corrido, era resolver tudo ligeiro pra poder voltar com Zé Neto na camionete. Uma da tarde, ele disse. Se a gente perdesse, ave maria…
Apesar da pressa, do calor e da zuada, vou matutando. Setecentos reais. Nem trezentos, nem quinhentos, mas setecentos reais. Avaliei a semana toda se podia dispor daquele dinheiro para coisa tão besta. Mas era de madeira. De lei. Ia durar muitas gerações, o homem da loja falou.
Mas que gerações? Que gerações?
Problema era Alfreda ter gostado só dessa. Volta e meia falava de ter uma estátua de São Francisco. E só servia a de setecentos reais? Era quase o preço de uma saca de feijão.
Estiagem aumentava a cada ano, digo nada. Uma chuvinha muito besta em março e a gente corria para plantar, mas a safra, faz tempo, não era das boas.
Além do estio, a bandidagem, que estava espalhada no interior. Não era vida, eu, na minha idade, precisar de arma. Dormir com aquilo debaixo do travesseiro. Alfreda e mamãe tinham uma vida de princesa, por isso o choro quando eu falava de irmos embora pra cidade. Mas era o destino que eu via. Alfreda e mamãe, duas beatas, rezando o dia todo, cantando louvor e eu sozinha pra tudo.
Hoje mesmo, é segunda, dia de feira na cidade. Trouxe mamãe, que queria ver a missa, enquanto fiz uns arranjos no armazém de Tinoco. Ainda tinha que passar no banco e tirar um dinheirinho. Mas não setecentos reais.
Eu não comprava nem roupa pra mim. Estava ali de roupa emprestada de Rosário. Rosário era prima minha. Legítima. Morava mais meia légua acima das terras de Nanoca, tinha marido e filho, mas é no meu pé desde moça. Eu fosse homem Rosário tinha se casado comigo. É um grude.
Já eu, me pegaram pra criar quando eu tinha sete anos. Fui empregada da família Tenório a vida toda. Era para ser filha de criação, mas não estudei como as outras, nem me arranjaram casamento, mas faço conta melhor que qualquer um, melhor que elas.
Atravessar o cruzamento no fim da ladeira era custoso. Minhas pernas doiam demais. Quem sabe mais tarde não pedia pra Alfreda me esfregar uma pomada santa. Se ela quisesse. Tudo que Alfreda queria, eu fazia. Já o contrario…
Fui empurrando o povo, empurrando e prestando atenção, com medo de furto. Se me roubam o dinheiro que tá na bolsa levam um mês todo de comida. Aí vai tá Alfreda, mamãe e eu de cuia na mão.
Meu deus, Mamãe! Cadê mamãe?!
Menino, mulher, cachorro e pelo menos uns dez tabulantes de café subiam e desciam a ladeira principal. De mamãe mesmo, nenhum sinal.
Onde foi mesmo que estive com ela? Depois da missa, foi na barraca de Luiza, onde compramos feijão de corda. Meu deus, vamos se atrasar.
Será que era caso de subir a ladeira de novo ou anunciar na rádio o sumiço de mamãe pra achar mais ligeiro?
Escutei uns berros vindo da banda da BR, era o leilão. Lembrei que mamãe gostava de ver o leilão de garrote. Capaz de estar lá. Embarafustei para a BR seguindo os gritos. A família Vieira de Melo se desfazia de alguns bois hoje. Ela bem devia estar lá mesmo.
Uma hora não dava mais para avançar. Era cavalo montado, gente de pé, balaio, galinha, além de cachorro pra praga. Deus me livre de levar um coice. Conheço gente que levou e nunca mais andou. Arrodeei a multidão e fui até o alpendre dos correios, que era mais alto. Estreitei as vistas, vi um vestido azul e um lenço laranja. Mamãe não sabia fazer combinação. As mãos cruzadas no peito segurando um rosário. Era mamãe, graças a deus.
Cheguei no largo do leilão, agora tinha que atravessar. Um garrote novo, branco feito neve, alto, olhava de banda.. para mim! Me encarando, feito me conhecesse.
Agora me faltava essa! Se eu fosse ter medo bem podia perder mamãe de vista.
Avancei por dentro das cordas, com uns olhos no padre e outro na missa. Ou seja, um no garrote e outro em mamãe. O animal se virou bem na minha direção: Estanquei. Valha-me minha nossa senhora, que medo eu tive.
Será que bicho de gente ruim é ruim também?
Não podia ficar a vida toda pensando.
Mexi pra direita , o bicho seguiu. Mexi pra esquerda, ele acompanhou. Dei passo pra frente e o bicho veio direto na minha intenção. Num relâmpago de pensamento decidi o caso:
_São Francisco de Assis, me livra desse garrote e eu compro a tua estátua pra Alfreda.
E meti perna por cima das cordas e corri, na ligeireza que podia. Mas foi um milagre. Senti o vento do bicho passando por mim, de fino, enquanto eu me esticava mais que corria, mirando no vestido azul de mamãe.
Cheguei do lado dela tremendo, aos berros: Mamãe!! Como é que a senhora faz uma coisa dessas??
Nem me ouviu. Nem fez caso. Me olhou tranquila como se nunca tivesse se separado de mim e me chamou de perto pra dizer:
_Ó, Belmira, esses novilhos aí, é tudo descendente do zebu que era do teu pai.
Peguei mamãe pela mão, sem um pingo de paciência, e fui vencendo a multidão pras bandas do banco. Lá na frente, bem à vista, graças a deus, a toyota de Zé Neto esperava, laranja como o lenço de mamãe.